terça-feira, 23 de junho de 2009

Justificação pela fé

Não são poucas as divergências e as controvérsias teológicas quando se fala em identificar um centro no pensamento de Paulo, o que se acirrará ainda mais em se tratando de todo o Novo Testamento. Fabris (1992) passa em revista diversas interpretações do corpus paulinum, desde os tempos do neotestamentários, passando pelos Pais da Igreja, pela Idade Média, pelos reformadores, até teólogos contemporâneos como Barth, Bultmann, Kümmel e Bornkamm.
Mais recentemente vemos ainda o caloroso debate em torno da justificação pela fé, no qual importantes exegetas, de modo coerente, afastam o aludido tema do centro da teologia paulina. A explanação de Käsemann em “Perspectivas Paulinas” aborda esta discussão com propriedade. Em que pese, entretanto, as argumentações desta corrente, há estudiosos como Joaquim Jeremias que trabalham no sentido de superar as críticas dos anteriores e construir novos ou mais elaborados fundamentos para corroborar a justificação pela fé como cerne do corpus paulinum.
Paulo é visto por Pette como um pensador entre as convicções do evangelho e do judaísmo farisaico. Quando fariseu ele defendia o conceito de “Justificado pelas obras da Lei”, mas ao encontrar-se com o Cristo, ele vai redirecionar as suas convicções e conceitos sem perder suas essências. Ao referir-se à sua nova condição dizendo que morreu para a “lei”, Paulo deixa claro que o termo “Lei” (Tora) refere- se à fé judaica enquanto sistema de convicções.” (Pette, 1987, p. 121). Todavia, ainda que o apóstolo se considere morto para a Lei (Gl. 2.19), continuou com a necessidade de ser justificado, ser justo, como algo imprescindível para poder ver a Deus, ser filho e participante do seu reino. Agora, porém, não mais pela Lei, mas pela Fé em Jesus Cristo filho de Deus, o que não extingue a Lei na ótica paulina. Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei. (Rm.3.31).
Observe que, muito embora Paulo esteja travando fervorosos embates contra “falsos irmãos” que queriam obrigar os cristãos ao cumprimento da lei, considerando que estes estavam invalidando o sacrifício de Cristo, jamais desprezara a lei totalmente. Naturalmente, o desenvolvimento da justificação pela fé foi proveniente principalmente deste embate. Embora, fatores socioeconômicos possam ter instigado o ataque dos judeus à pregação de Paulo, conforme nos alerta Carlos Mesters.
“Paulo fala da Dikaiosyné Theou, a justiça de Deus”. Não apenas como “atributo de Deus”, como aquele que julga, Paulo consegue ver na raiz dessa palavra implicações profundas e escatológica, como a “manifestação da dikaisyné de Deus, estendida para todos.”(Brown, 2004, p. 758).
Paulo usa Justificação para descrever o agir de Deus na vida daqueles que crêem nele por Cristo. “ele foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação” (Rm.4.25). Deus opera seu ato de justiça não porque o homem é inocente ou merecedor mas, por um só inocente “Jesus Cristo”, revelando assim o tão grande amor de Deus por todos. Isso é graça, não é fruto das obras da Lei, é dádiva de Deus.
Sendo justificados gratuitamente, pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus,
Ao qual Deus propôs para propiciação, pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; (Rm. 3.24.25).
Ser justificado pela fé em Jesus Cristo é estreitar o seu relacionamento com Deus, “Paulo vive para Deus” (Gl.2.19), “já não sou eu que vivo, mas cristo vive em mim (Gl.2.22). Para manter esse relacionamento com Deus, o homem deve manter seu próprio sistema de convicções para que tudo que ele tenha que fazer, faça com dedicação.
No Judaísmo Paulo diz que o sistema de convicções é focado na “Tora” para fazer a obra da “Tora” mantendo assim o seu relacionamento com Deus. Para o cristão essa relação se da por Jesus que nos justifica e nos dá acesso a Deus pela fé.
Para o exegeta alemão Joachim Jeremias, dikaiostai toma um sentido de achar salvação; achar graça; conceder graça, no ativo. Portanto, um uso soteriológico. Entretanto, “quando Paulo fala em achar graça só pela fé, é sempre em oposição à possibilidade de achá-la pelas obras.” (Jeremias, 2005, p. 72)
Em suma, para Jeremias, “a fonte da doutrina da justificação de Paulo é Jesus.” (Idem, p. 88)
Todavia, existem vários teólogos como Albert Schweitzer, William Wrede e Stendahl que defendem uma posição marginal da doutrina da justificação na teologia paulina. Eles afirmam que a doutrina da justificação é uma cratera secundária que se formou no interior do círculo da cratera principal. (Idem, p. 76)
Stendahl, por sua vez, chega à antítese entre a história da salvação, enquanto posição fundamental do apóstolo, e a sua doutrina da justificação como repúdio ao judaísmo, devida à situação contingente do cristianismo primitivo. (Käsemann, 2003, p. 106)
Käsemann, realizando uma análise em perspectiva da pesquisa, considera que “não se pode contestar seriamente o horizonte histórico-salvífico da teologia paulina. Mas com isto ainda não está clara a importância deste horizonte no pensamento do Apóstolo. Assim sendo, o autor passa a apresentar fundamentos para um ponto de vista histórico-salvífico em Paulo. (Käsemann, 2003)
“Assim, Rm 5.12ss mostra claramente que o apóstolo vê a história não como um processo evolutivo em andamento, mas como oposição entre as esferas de Adão e de Cristo. A teologia paulina desenvolve amplamente esta posição como luta entre morte e vida, pecado e salvação, lei e evangelho. (Käsemann, 2003, p. 110)
“Somente um grande equívoco pode fazer do apóstolo um espiritualista, o que surpreendentemente sempre tem acontecido. Para ele a história da salvação tem uma dimensão espacial e temporal, tem limites, que as separam das regiões cósmicas, e tem uma concatenação que, partindo da criação e passando pela eleição de Israel e pela promessa, leva a Cristo e à parusia. (Idem, p. 113)
Por isso, a história é, para Paulo, o êxodo sob o signo da palavra e contra o riso justificado de Sara. A sua continuidade é paradoxal porque ela se mantém somente se a palavra de Deus, contra as realidades terrenas, cria para si filhos e comunidades que abracem a primeira bem-aventurança. (Idem, p. 115)
À guisa de conclusão, apresentando uma proposta teológica para o debate, Käsemann enumera as questões centrais para a presente reflexão e sugere um horizonte hermenêutico.
“Se quisermos ver claramente em que consiste a peculiaridade da teologia paulina da justificação, devemos antes responder a duas perguntas: enquanto doutrina de luta, foi ela condicionada de tal modo pela época, que hoje deveria ser considerada superada? E: orienta-se ela primariamente (como pensa o protestantismo em geral) para o indivíduo, devendo por isso ser completada (ou mesmo substituída) por uma exposição histórico salvífica?” (Idem, p. 117)
“A Basiléia de Deus, [para o autor], constitui o conteúdo da doutrina paulina da justificação. O apóstolo exprime isso geralmente em linguagem antropológica porque quer que a nossa vida seja determinada por ela. A Basiléia de Deus se faz presente onde somos ou nos tornamos plenamente humanos. Do contrário, ela seria uma ilusão. A cristologia encerrada na doutrina da justificação corresponde à existência vivida dia a dia no mundo.” (Idem, p. 124)
“Sendo assim, a história da salvação não é o cumprimento e nem o sucedâneo da justificação; é a sua profundeza histórica e, portanto, um de seus aspectos. Sem a fé na justificação do ímpio, não se pode compreender adequadamente nem a Escritura e nem o mundo. Não se pode opor a justificação à história da salvação; isso levaria ao individualismo ou à ideologia, e, em ambos os casos, Deus não seria mantido como criador do mundo. A justificação é o horizonte da história da salvação, que permanece o meio, o começo e o fim da salvação. (Idem, p. 125)

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BROWN, Raymond. Introdução ao Novo Testamento. Trad. Paulo F. Valério – São Paulo: Paulinas, 2004. (Coleção Bíblia e História Série Maior)
FABRIS, Rinaldo. As Cartas de Paulo. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Loyola, 1992.
JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. Tradução João Rezende Costa – São Paulo: Ed. Academia Cristã, 2005.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. Tradução Benôni Lemos. 2ª ed. São Paulo: Teológica, 2003.
PETTE,Daniel. Paulo, sua fé e a força do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1987.

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